O Brasil no enfrentamento ao tráfico do órgãos: o Caso Pavesi
- Blenda Lara
- 18 de dez. de 2022
- 5 min de leitura

Caro leitor, considerando que tive muito retorno em relação ao último artigo escrito sobre tráfico de órgãos, recebi um pedido especial para aprofundar no tema e mostrar como é a realidade no Brasil. E, ao pesquisar, deparei-me com esse triste caso.
No início dos anos 2000, em Poços de Caldas, um caso colocou em dúvida o sistema de transplantes do Brasil. Em 19 de abril de 2000, Paulo Pavesi Veronesi, então com 10 anos, em uma brincadeira com amigos, escorregou e caiu de uma altura de aproximadamente 10 metros do playground do prédio onde morava.
Como resultado da queda, o garoto sofreu traumatismo craniano, mas, de acordo com testemunhas, ele estava estável após a queda e até mesmo conversando. Ele chorava e foi, acompanhado de dois enfermeiros, para o atendimento de emergência. Testemunhas asseguram que ele saiu andando do local do acidente e entrou andando no hospital. Ele recebeu os primeiros socorros no hospital local, Hospital Pedro Sanches, mas, em razão de complicações em uma cirurgia, acabou indo parar na Santa Casa da cidade. Nesse hospital teria sido constatada a morte cerebral da criança e os órgãos foram retirados para transplante. Quando o pai da criança foi informado da morte do filho, aceitou doar os órgãos.
As desconfianças sobre o caso vieram à tona, quando o pai recebeu uma conta de mais de onze mil reais do hospital. Nela constavam inclusive remédios relacionados ao processo de retirada dos órgãos para transplante. Sabendo que isso era gratuito e pelo SUS, desconfiado, o pai começou a investigar.
O pai da criança apurou que, os médicos do hospital Pedro Sanches deram aos médicos transplantantes acesso à UTI de Paulinho, passando a trata-lo tendo em vista a preservação de seus órgãos para transplante e não a sua recuperação. A morte cerebral da criança não havia ocorrido de fato, o laudo fora, na verdade, forjado. Os órgãos foram retirados quando ele ainda estava vivo, ou seja, os médicos que fizeram a retirada mataram a criança.
A inconformidade de um pai pela perda do seu filho deu lugar à descoberta de um grande esquema de venda de órgãos gerenciado por uma central clandestina, a MG Sul Transplantes. Essa seria, supostamente, uma ONG com um nome muito parecido da instituição que legalmente tinha o direito de operacionalizar a realização dos transplantes em MG.
Não só o caso do menino ocorreu, mas pelo menos oito semelhantes foram inseridos nas investigações. Tratavam-se de vítimas que tinham seus cuidados negligenciados para ocasionar ou apressar o óbito, a fim de permitir o transplante de órgãos dentro de uma fila própria existente nessa entidade. Essa fila desrespeitava a ordem nacional de transplantes de acordo com a previsão legal.
O esquema foi descrito pela Justiça e Ministério Público como uma verdadeira máfia, envolvendo diversos médicos e autoridades políticas locais. Depois que o caso veio à tona, diversos fatos chamaram atenção. O diretor da Santa Casa de Misericórdia em Poços de Caldas, Cláudio Marcondes, foi encontrado morto com um tiro. Provas desapareceram dos autos do processo e o processo se arrastou na justiça mais que o normal de modo a facilitar uma possível prescrição dos crimes.
A situação não envolveu só o trágico fim dessa criança. Além desse caso, outro que impressiona foi o de José Domingos Carvalho que faleceu em 2001 aos 38 anos. Ele foi sujeito a maus tratos, na Santa Casa local, não recebendo comida inclusive, para morrer e ter seus órgãos traficados. Nesse caso houve condenação em primeira instância por homicídio doloso.
No caso Pavesi, denominado de Caso Zero, quatro médicos foram denunciados pelo Ministério Público por homicídio qualificado. A busca de um pai resultou em um livro de mais de 400 páginas lançado em 2014: “Tráfico de Órgãos no Brasil – O que a máfia não quer que você saiba”. A família foi pressionada e ameaçada e precisou viver um tempo fora do Brasil.
As investigações resultaram no descredenciamento da Santa Casa da cidade para realização de transplantes e remoção de órgãos no ano de 2002. A entidade MG Sul Transplantes também foi extinta no local.
Em razão da pressão referente ao caso, a família da criança precisou deixar o país e ir morar na Europa. Além disso, parte do julgamento foi transferido para Belo Horizonte para evitar influência dos acusados sobre os júri.
Três médicos foram julgados no caso. Dois deles condenados a 25 anos de prisão e um absolvido (o anestesista) em 2021. Um quarto médico, Álvaro Ianhez, foi acusado de prejudicar a melhora da recuperação de Paulinho e de participar de procedimentos para forjar a morte encefálica dele. Ele era diretor da Santa Casa de Misericórdia. Ele foi condenado a 21 anos e 8 meses de prisão e a pena de multa. Outros três médicos acusados de participar do caso foram condenados em 2014, mas a sentença foi anulada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, porque os desembargadores entenderam que o caso deveria ter sido julgado por um júri popular (crime doloso contra a vida e não crime de retirada de órgãos). Em recurso, o STF restaurou a sentença e considerou que o crime de remoção de ilegal de órgãos era um crime previsto na legislação e que a morte foi uma consequência do ato. Portanto, a vara criminal que julgou em primeira instância era a competente para o caso.
O pai lamentou a anulação da sentença, pois passar o crime para outra qualificação acaba por ser algo que facilita a impunidade, uma vez que o crime de homicídio está próximo da prescrição. Esses três médicos são os únicos que ainda não estão cumprindo pena. Conforme apuração por meio das redes sociais, esses médicos estão livres e ainda exercem a medicina.
O tema é espinhoso e pouco comentado. Suspeita-se também que o tráfico de órgãos é alimentado por órgãos retirados de forma ilícita em agências funerárias, sem a ciência e o consentimento das famílias. Estima-se que cerca de 1 em cada 10 rins transplantados vêm do mercado negro de órgãos, onde esse rim é orçado em mais de 160 mil dólares americanos. A China permitia a extração de órgãos de prisioneiros executados para transplante até o ano de 2015.
O combate esbarra no sigilo médico. Muitos europeus viajam para a China para obter um novo órgão, mas a apuração da origem do órgão esbarra no silêncio da relação médico-paciente.
No caso inspirador desse texto, a morte de um garotinho inocente e a busca incessante de um pai inconformado serviu para trazer à tona uma verdadeira máfia de transplantados que atuava de uma forma bem livre no Brasil nos anos 2000, mas o que tem sido feito na atualidade para evitar que casos semelhantes ainda ocorram?
Comentarios